Passeio pelas Vanguardas

Raquel Valente
5 min readSep 17, 2021

Um conto fantasioso sobre o poder transformador da arte.

Reprodução/ Monet

Lá fora está tudo nublado. Mais um daqueles típicos dias de temperatura amena, de nuvens esparsas tampando o horizonte e de cores frias a tingir o céu da tarde. Diante do clima melancólico e pouco atrativo para um passeio ao ar livre, nada mais adequado do que uma visita ao museu. Aqui dentro do prédio antigo de mármore com cheiro de mobília antiga e tinta fresca, por outro lado, emana e brilha vida. Ao perambular pelos corredores e fitar de relance os inúmeros quadros — que apesar de inertes no mesmo lugar, parecem se movimentar à medida que arrisco mais um passo -, sinto um desejo inatingível crescer dentro de mim. Quem nunca teve vontade de se transportar para o interior de um quadro? Adentrar uma paisagem de outra época, uma história inventada, uma recordação sob outro prisma individual. Estar imerso em um novo e fascinante universo — bem ali, na sua frente, pronto para ser explorado e desvendado em cada milímetro cúbico. De repente, pauso o meu devaneio para encarar a Ponte Japonesa (1899) de Monet. Sem pestanejar, uma ideia invade minha mente: e se eu fechar os olhos agora e me imaginar dentro desta obra?

Reprodução/ Ponte Japonesa (1899), Monet

Olho ao redor para ver se não há ninguém por perto me espreitando, e sutilmente, cerro as duas pálpebras. Concentre-se. Concentre-se. Uma vez que já me sinto em uma sintonia diferente, como se estivesse sonhando acordada, decido abrir os olhos. Para a minha surpresa eu não estou no longo salão do museu, mas sim, exatamente em cima da bendita ponte japonesa que segundos atrás estava a alguns metros de distância do meu corpo. Esfrego os olhos na tentativa vã de acordar do “sonho”. No entanto, as sombras luminosas e coloridas, as figuras sem contorno nítido e a imagem repleta de pequenas pinceladas entregam a verdade que me escapa à compreensão: é real! Uma vez conformada com o novo ambiente, decido contemplá-lo. O jardim onde se situa a ponte é habitado por pássaros que cantam uma melodia harmoniosa, sapos que coaxam acomodados em vitórias-régias — flutuando sobre o pequeno riacho rodeado de árvores e flores, que exalam um perfume exótico e, ao mesmo tempo, refrescante. Todo o cenário transmite serenidade e me fazem refletir sobre a beleza da natureza. E mais, sobre o quanto os instantes são preciosos e só quem se permite apreciar a vista é capaz de valorizá-los antes que eles voem para bem longe, para um lugar onde jamais poderão ser encontrados. Subitamente, um redemoinho de vento me envolve, e sem que eu tenha tempo para mais nada, estou de volta ao museu. A experiência foi curta, mas nem por isso, menos impactante. Indago se poderia repeti-la, mas desta vez, em outro quadro. Estou virando à direita em um corredor quando minha atenção é captada pelo Studio With Plaster Head (1925) de Picasso.

Reprodução/ Studio With Plaster Head (1925), Picasso

Fecho os olhos, respiro fundo e afasto todos os pensamentos, entrando em estado meditativo. Em poucos segundos sou teletransportada para a obra. A fragmentação e a distorção das formas me evocam sensações de insegurança e estranhamento. Tento me conectar com a cena em volta e observo os diversos objetos, que a depender do ângulo, se apresentam de uma forma peculiar. Faço uma analogia à minha própria existência. Muitas vezes nos apegamos tanto ao óbvio e concreto que nos esquecemos de explorar as diferentes perspectivas e nos abrir para outros caminhos. Em meio às encruzilhadas que surgem no percurso, acabamos nos perdendo e nos distanciando dos próprios propósitos. Assim, sem que nos demos conta, estamos imersos em um ciclo de frustração e medo. A vida é como um grande quebra-cabeça. Resta a nós encontrar as peças que se encaixam e descobrir a chave interior que nos dê acesso a uma vida abundante em sentido.

Feita a reflexão, uma luz ofusca minha visão e logo retorno ao meu “habitat natural”. Pelo visto, há um padrão nessas viagens “interobrasdearte”: basta criar uma associação entre o cenário fictício e a minha própria realidade para que a experiência seja interrompida. Analiso as paredes do salão em busca da próxima aventura. A obra “Moscow I” (1916) de Wassily Kandinsky é a escolhida.

Reprodução/ “Moscow I” (1916), Wassily Kandinsky

Pela terceira vez, repito todo o processo e, em um pequeno lapso de tempo, estou submersa no caos colorido e movimentado da pintura. A confusão de elementos, as cores vivas e expressivas, além das formas embaralhadas de prédios e monumentos me remetem ao complexo inconsciente humano. Quantas vezes nos esquivamos dos nossos desejos e sentimentos mais profundos por medo de mergulhar mais fundo e acabar afogando? Por mais que entrar em contato possa despertar feridas já adormecidas, o processo de autodescoberta é importante para a evolução. É só quando ficamos frente a frente com nossa essência que entendemos no que podemos melhorar e quais estratégias traçar para alcançar tal objetivo. O sofrimento, portanto, é uma arte que deve ser dominada a fim de se tirar o melhor proveito das intempéries diárias, e como consequência, se tornar mais resiliente.

Tudo fica embaçado até que a imagem da cidade é substituída pelo salão vazio do museu. Para fechar com chave de ouro essa dinâmica maluca, decido fazer uma visita ao cenário de Automat (1927) de Edward Hopper.

Reprodução/ Automat (1927), Edward Hopper

A solidão é o sentimento que reina ao sentar na cadeira de frente à mulher, acompanhada de sua xícara de café. Em paralelo aos tempos atuais, essa foi a situação mais comum entre todas que, até então, vivenciei. Essa é a realidade nua e crua, sem fantasias. Faz parte do cotidiano acelerado e individualista da modernidade. O problema não está na solidão em si, mas na relação que cultivamos com ela. O estar só, se bem aproveitado, promove um recarregamento das energias, um reestabelecimento do equilíbrio, uma pausa para olhar dentro de si e extrair o que há de melhor. Cabe à humanidade ressignificar a ideia da solidão.

O alarme toca e invade minha viagem pelas vanguardas artísticas denunciando que, no fim das contas, tudo não passava de um sonho fantástico.

--

--

Raquel Valente

jornalista fascinada pelas arte. busco expressar em palavras tudo que há em minha alma. me aventuro em crônicas, poesias e resenhas de produtos culturais.